terça-feira, 26 de agosto de 2025

A CONVERSA DE ZÉ MUCURA E CARRAPICHO NA TERRA SECA DO NORTE (CORDEL) Fábio Fernandes

 


Mucura é um roedor

Conhecido no sertão

Não teme ter predador

Sabido na obrigação

Marsupial destemido

Gambá por opinião

 

Fugindo de muito padrão

Ele foi inspiração

Pra Zé, um poeta de fé

Da terra do algodão

O artista quebra a regra

Quando tem inspiração.

 

Zé não quis o seu nome

Ligado a bicho bonito

Quis fazer diferença

Pela força do seu grito

Mostrando que o poeta

Deixa até gambá sabido.

 

Depois de seu batizado

Zé Mucura ali nasceu

Escrevendo muito versejo

De nada ele se perdeu

O poeta se criava

A poesia agradeceu

 

Certo dia entristecido

Com a calma do sertão

Zé Mucura começou

Uma peregrinação

Saindo de sua casa

Na estrada solidão.

 

Entre terras e barrancos

A paisagem se mostrava

Zé Mucura caminhando

A secura acompanhava

Pois a chuva abençoada

A tempo não se mostrava

 

Cansado da insolação

Zé viu um pé de algaroba

Lembrou de quando criança

Da baje que não engorda

Pra saciar sua fome

É o que comia de sobra

 

A tristeza de Mucura

Se mostrou na sua face

Homem bom e andarilho

Nem a fome o abate

Pois na arte encontrou

A vida que então renasce

 

Caminhando pelo sertão

Companheiro da solidão

Zé então ouviu a voz

Fruto da imaginação

Era um homem colorido

Que lhe chamou atenção

 




O homem se apresentou

E falou no seu ouvido

“Não tenha medo de mim”

Eu me chamo Carrapicho

Na jornada da ilusão

Eu serei o seu amigo

 

Carrapicho é um capim

Uma grande erva daninha

Se vira em qualquer lugar

E aguenta ladainha

Como pode ser uma praga

Também pode ser boazinha

 

Mas me diga Carrapicho

O que vem fazer aqui

Eu só quero descansar

As margens do Potengi

Esse rio azul e belo

Que eu vejo bem ali

 

Não se frustre bom poeta

Isso é imaginação

Sinto muito te avisar

Que estamos no sertão

Isso tudo é só miragem

Tudo isso é ilusão.

 

Andando pelo sertão

De falar já ficou rouco

Era incompreendido

Ele foi chamado de louco

Mas poeta que se preza

Não se abala com pouco

 

Então pegaram os troços

E continuaram a jornada

Levando um violão velho

E uma bolsa esfarrapada

Estava cheia de cordel

Com a leitura encantada

 


Caminhando na estrada

A sede bateu bem forte

Viram então um pobre velho

Já no seu leito de morte

Carregando uma botija

Com água limpa do pote

 

Chegaram perto do velho

Ele então ofereceu

Um pouco de sua água

Logo após adormeceu

Seu sono foi tão profundo

Que ele desapareceu

 

Zé Mucura não entendeu

Como o velho ali sumiu

Deixando a botija d’água

Sem motivo que partiu

Só queria entender

O que a ele se cumpriu

 

Carrapicho então falou

Que isso é coisa de bondade

Esse velho é o mistério

Que transborda caridade

Pode lhe faltar o pão

Mas não falta humildade.

 

Zé Mucura então chorou

E caiu numa aflição

Quis saber se o pobre velho

Era uma alucinação

Contudo não entendeu

O seu grande coração

 

Olhou então pra carrapicho

E pensante confessou

Que ser pobre não impede

De levar um cobertor

Àquele que sente frio

Mesmo escondendo a dor

 

Carrapicho entendeu

O que o poeta lhe disse

Percebeu que na tristeza

Não há ilusão que fique

A ferida é real

Até que remédio lhe aplique.

 

Continuaram a jornada

Sem aquilo entender

O mistério do velho bom

Que lhe deu o que beber

Partindo assim sem destino

Na estrada a percorrer


Chegam então num povoado

Bem pequeno e distante

Terra assim muito modesta

De um povo aconchegante

Zé Mucura se anima

E se sente ofegante

 

Lá estende seu chapéu

Numa praça da cidade

Tira o seu violão

Poetiza à vontade

Começa então seu poema

Com tanta felicidade

 

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá

Tem gente que chora pouco

Pois não tem o que faltar

Mas tem quem soluce muito

Sem ter leite pra mamar

 

Na longa estrada da vida

A viola me companha

Meu amigo Carrapicho

Cativa de forma tamanha

Não me deixa desistir

Tanto que a fome apanha

 

Aos senhores e senhoras

Peço aqui sua atenção

Ajudem aqui um poeta

Mesmo sem contemplação

Pra que nessa estrada infinita

Eu alcance a salvação.

 

Logo uma jovem moça

Caminha até o chapéu

Atribui uma moeda

Retirando do seu véu

E disse assim para o moço

Muita “bença” lá do céu

 

Nessa hora tão singela

Zé Mucura se encantou

Sentiu nela a pureza

Que então se apaixonou

Não sabia explicar

O laço que se formou

 

Ele viu então ali

A moça sumindo embora

Não contia a emoção

Não sabia por outrora

Uma dor no coração

Corroía sangue afora.

 

A moça sumiu no vento

O poeta então se foi

Não dormia no relento

Era forte como um boi

Nunca conheceu amor

Mas lembrava de quem foi

 

Foi embora na estrada

Sem rumo a esperar

Caminhando o poeta

Carrapicho a acompanhar

Logo então voltou a sede

Tem um rio a se banhar

 

O poeta contemplou

À água doce do rio

Mostrou a felicidade

E sentiu um arrepio

Lá o velho apareceu

Começou um clima frio

 

Logo o velho foi trazendo

Pegando em sua mão

Uma jovem moça linda

Que laçou o coração

Do poeta Zé Mucura

Amante da emoção

 

O velho olhou nos olhos

E Mucura entendeu

Nasceu na fome e pobreza

Para o mal não se vendeu

A dor humana na poesia

Ele então a descreveu

 


A Moça estendeu a mão

E Mucura segurou

O gesto dessa união

A vida se encaminhou

De premiar um coração

Que a fome superou

 

Mucura fechou os olhos

De joelho se rendeu

Um sono grande e profundo

Firme e forte ocorreu

Debaixo da algaroba

Mucura desfaleceu

 

A história pode até

Ofertar uma esperança

Praquele bom sertanejo

Que não soube ser criança

Pois cedo foi pro batente

Ajudar a ter bonança

 

Mucura em sua vida

Não soube o que era amar

Pois quem tem fome e sente

Deseja se alimentar

Não entende o coração

Não sabe se apaixonar

 

O poeta agora pleno

No mundo da abstração

Percebeu que o pobre velho

Representava o perdão

Pras dores que ele sentia

Com a fome no grotão.

 

A moça era a esperança

Que ele tinha se encontrar

Era força do poeta

Pela vida a versejar

A arte que ele fazia

Era pra dor aliviar

 

Carrapicho era amizade

Que ele não conheceu

Nunca soube o que era amor

Isso nunca lhe ocorreu

A falta que o mundo fez

Carrapicho preencheu.

 

Hoje dizem por aí

Que o poeta se encarnou

Em forma de animal

Ele então se encantou

Um marsupial fiel

Que poeta versejou.


Texto: Fábio Fernandes

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