Em muitos contextos em que a realidade se torna insuportável, a única saída para o artista é a ficção, a imaginação, a criação de uma outra verdade. As vezes, porém, essa dura realidade é tão devastadora, que não permite sequer que a imaginação – do artista e do público – possa correr livremente. E, no Brasil, a censura imperou pela maior parte do tempo, mas especialmente durante o regime militar que se impôs sobre o país a partir de 1964 até a redemocratização.
Engana-se quem pensa que os artistas eram perseguidos somente por serem de esquerda ou por combaterem diretamente o governo: a defesa das tais “morais e bons costumes” também levou muito artista a ter sua voz calada. Menções sexuais, eróticas, à homossexualidade ou a tudo que fosse considerado “devassidão” fazia levantar todas as sobrancelhas da censura, sempre pronta a riscar furiosamente uma cena, uma página, um desenho ou uma letra de música que pudesse lembrar o público de que eles possuem desejos e impulsos sexuais.
Uma das artistas mais censuradas do Brasil, com 33 de seus 36 livros proibidos na década de 70, Cassandra Rios ainda assim conseguiu se tornar a primeira mulher a atingir a marca de 1 milhão de exemplares vendidos. Títulos como “O Prazer de Pecar”, “Tessa, a Gata”, “Carne em Delírio” e “A Paranóica” tratavam, a partir do suspense e do mistério, do universo erótico e principalmente da homossexualidade feminina. O pioneirismo da autora nos temas, hoje praticamente esquecida, fez com que Cassandra fosse taxada como comunista, obscena e sem qualidade, apesar de seu enorme sucesso comercial.
Sendo um pouco a manifestação artística essencial do Brasil, naturalmente a música foi muito vitimada pela censura. Das capas dos discos, passando pela atitude dos artistas, até chegar às letras das canções, tudo podia ser motivo de desconfiança e proibição de incitar a perversão e a pouca vergonha.
A capa do disco Índia, de Gal Costa, assim como de Jóia, de Caetano Veloso, foram proibidas pela “nudez” apresentada – ainda que, no caso de Caetano, se tratasse de um desenho, e que as “vergonhas” do cantor, de sua mulher e seu filho estivessem cobertas por pombas. No fim, só restou as pombas, e o disco de Gal teve que ser vendida com uma capa plástica cobrindo a capa original.
Similar ao caso de Cassandra, alguns dos compositores mais perseguidos da ditadura sequer são identificados como ligados à resistência ou à esquerda. Mais ainda, são artistas ligados ao que ficou conhecido como Brega, rejeitado pela crítica e pela inteligência – mas consumidos fortemente pelo público, e censurados justamente por insinuações eróticas.
Odair José teve diversas canções proibidas pela censura, e sua “Em qualquer lugar” teve a letra inteira riscada como imoral, por exaltar o amor livre. Versos como “se você quiser/ a gente pode amar/ no meio dessa gente/ em qualquer lugar/ Dentro do meu carro/ ou mesmo no jardim/ debaixo do chuveiro/ você sorri pra mim” só puderam ser gravados pelo compositor doze anos depois, já na década de 1980 e com outro título.
O mesmo aconteceu com a canção “Bárbara” e de todo o espetáculo no qual ela estava inserida, o musical Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra. A peça foi proibida, e a canção, lançada em disco, teve um trecho subtraído, por deixar claro se tratar de um amor homossexual entre as personagens Ana de Amsterdam e Bárbara: “Vamos ceder enfim à tentação/ das nossas bocas cruas/ E mergulhar no poço escuro de nós duas/”. No disco, a palavra “duas” foi simplesmente apagada.
Na mesma medida, a banda Secos & Molhados não precisava sequer cantar para ser um afronte aos bons costumes: bastava a maquiagem, o rebolado, os dorsos nus e o jeito de serpara que a censura os quisesse perseguir.
Quando a música começava a coisa piorava: Ney Matogrosso cantava com a voz fina e feminina, propositalmente provocando o público e maravilhosamente tencionando as identidades de gênero. Foi censurado e não pôde sequer ser filmado em close em apresentações na TV.
O cinema também esteve intensamente sujeito à censura, especialmente por seu potencial visual explícito. Desde clássicos do cinema nacional, como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (que teve 16 cenas de nudez mencionadas pela censura, tendo 3 cenas de fato retiradas do filme) até Os Homens Que eu Tive, com Darlene Glória, que precisou de poucas exibições para que sua história de amor livre, e liturgia “paz e amor” fosse retirada de cartaz.
O clássico “Como Era Gostoso o meu Francês”, de Nelson Pereira dos Santos, também foi inicialmente censurado por nudez, mas por ser uma história passada no Brasil indígena, a nudez do índio não foi mais considerada pornográfica, e o filme foi liberado para maiores de 18 anos.
Se os tempos de censura eram difíceis para a alta produção cultural, imagine para uma cena marginal de cinema? A Boca do Lixo, região do centro de São Paulo da onde emergiu o que ficou conhecido como Pornochanchada, teve também sua produção pautada pelos calafrios da moralidade que a nudez e o erotismo provocavam nos censores.
Essa história é retratada na série Magnifica 70, da HBO, que mostra justamente a transformação vivida por um censor durante a década de 1970 chamado Vicente (interpretado por Marcos Winter) que, ao proibir o filme A Devassa da Estudante, feito na Boca do Lixo, se vê deslumbrado pela personagem Dora Dumar (Simone Spoladore). Vicente então acaba se aproximando do universo da Boca do Lixo, e trabalhando como roteirista para a produção, e vive um triangulo amoroso envolvendo Dora.
A segunda temporada da série segue se aprofundando no confronto entre o desejado e o proibido, a vontade e a repressão, a liberdade e o preconceito. Sua trama girará ao redor de um esquema de corrupção envolvendo a chefe da censura (que será a grande vilã dessa temporada) e a Embrafilmes, através do qual Vicente será chantageado. Drogada e confusa, Dora (a estrela do filme que apaixonou Vicente) também estará em profundo dilema, sobre se deve ou não entregar seus colegas para salvar a própria pele.
Tudo isso se intensifica ainda mais em seu mistério e tensão (e ilustra o tipo de efeito que a censura poderia provocar) quando Vicente começa a enxergar o fantasma de Inácio, um diretor que se suicidou por justamente ter tido seu filme proibido por Vicente enquanto era censor.
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