Há cerca de uma década assola no teatro potiguar uma onda de encenações ao ar livre, em geral montadas em grande estruturas, popularmente conhecidas por “autos”. Para quem jamais ouviu falar, a matriarca destes espetáculos é a famigerada Paixão de Cristo encenada na cidade pernambucana de Nova Jerusalém.
Estes espetáculos normalmente têm por característica homenagear santos – em geral padroeiros das cidades onde acontecem –, mas também podem prestar tributos a fatos históricos, como o dia em que a polícia expulsou o bando de Lampião da cidade de Mossoró, ou até mesmo – pasmem! – a inauguração de uma ponte. Outros traços marcantes destes espetáculos é a utilização repetida do mesmo texto por anos a fio, em alguns casos ad infinitum, o que resulta em tentativas, por parte dos encenadores, de criar a cada ano novas pirotecnias para despertar algum tipo de interesse no público em assistir o mesmo espetáculo, com a mesma dramaturgia, com uma nova demão de tinta a cada ano. Por falar em pirotecnia, outro traço marcante destes espetáculos é, inevitavelmente, serem encerrados por suntuosas – e, por consequência, despendiosas – queimas de fogos de artifício. Por fim, é comum também estes espetáculos serem seguidos de shows musicais de artistas de destaque (ou não) no país, de Gilberto Gil a Calypso, de Titãs a Calcinha Preta.
Estas práticas, que se tornaram recorrentes, alastram-se a uma assustadora velocidade e, por incrível que pareça, superam diferenças de gestões, passando de governo para governo sem nenhum tipo daquele tradicional pudor de dar continuidade a ações da gestão anterior. Os autos têm trazido distorções e contradições que se amplificam ano a ano, como por exemplo:
· Enquanto os artistas norte-riograndenses seguem assistindo a total ausência de uma proposta de política pública para as artes, sempre partindo da alegação da ausência de verba, caminhões de dinheiro são despejados nestes tais “autos”;
· Enquanto os chamados “artistas da terra” – como os gestores públicos adoram nos chamar – degladiam-se para conseguir um lugarzinho ao sol nos disputados elencos destes espetáculos (a troco de medíocres cachês), a grande parte do dinheiro investido é voltada para a infra-estrutura – banheiros químicos, folders luxuosos, etc. – e para bancar a vinda dos milionários shows musicais que procedem às apresentações;
· Enquanto os gestores públicos defendem que estes espetáculos formam público, pelos numerosas platéias que levam às ruas – ignorando o fato de artistas e bandas de grande apelo midiático nacionais se apresentam logo em seguida – as casas de espetáculo durante todo o ano continuam com públicos minguados nas corajosas (insanas?) temporadas dos grupos locais;
· Enquanto milhares de reais são investidos em ações pontuais com duração de poucas semanas, os grupos de teatro do estado seguem sem nenhum tipo de fomento – editais, prêmios, programas voltados à manutenção, produção, circulação ou pesquisa – durante todo o ano, o que torna praticamente impossível a sobrevivência destes grupos que, diante deste panorama, seguem tocando seus trabalhos nas madrugadas e finais de semana (e com resultados estéticos condizentes à estas condições).
Estas iniciativas, aliadas a inócuos mecanismos de benefício fiscal estadual ou municipal, compõem a totalidade das ações para a cultura no Rio Grande do Norte. Durante anos, esta questão foi tratada como tabu entre os artistas do estado, parte por temerem a perda da sua fatia do bolo, parte por acreditarem que essa “política de autos” jamais será desfeita e, por isso, seria perda de tempo refletir, discutir ou tomar qualquer posicionamento.
O certo é que os frutos mais expressivos destas ações são de cunho eleitoral e mercadológico, garantindo a permanência dos mesmos gestores – com algumas variações que pouco mudam o panorama, já que vivemos num estado sem oposição –, favorecendo o turismo (pois que utilizem dinheiro desta secretaria!) e, principalmente, enchendo os olhos da população com espetáculos que nada acrescentam ao crescimento da linguagem cênica potiguar, mas que trazem um verniz que faz parecer aos olhos leigos uma política cultural bem sucedida.
O que parece, finalmente, é que uma parcela dos artistas do Rio Grande do Norte finalmente decidiu debruçar-se sobre a questão, debatê-la, questioná-la, e propor uma reflexão mais consistente sobre o tema. Resta saber se o poder público se dispõe a sentar, e a começar a pensar sobre a sua função de fomento à práticas continuadas, de pesquisa e formação, batendo de frente à hedionda lógica ditatorial do mercado, entendendo a cultura como ferramenta de construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Qual o próximo passo?
Fonte
http://www.primeirosinal.com.br/artigos/o-autismo-cultural-no-rio-grande-do-norte