É difícil falar o que nem todos compreendem bem. O que nem todos estão dispostos a perceber através do som metalizado de um violão de repentistas no meio de uma feira livre da cidade de Sobral, no Ceará. A força do canto poético daquele menino perdia o brilho ao se misturar aos gritos dos vendedores ofertando os melhores preços. Ele havia percebido que não adiantava cantar mais alto, nem falar de coisas do coração pra pessoas apressadas e preocupadas demais com a rotina da feira. Talvez tenha sido essa insistência que tenha dado origem no que eu considero como uma das maiores injustiças cometida contra um músico no Brasil.
Belchior abandou a feira e foi trabalhar como radialista. Aprendeu como funcionava a dinâmica da música até sair no radinho de pilha das casas de toda a cidade. Foi estudar medicina na capital, mas abandonou o curso faltando apenas dois anos pro término e se dedicou à música que ele sempre quis.
Pouca gente da minha geração ou de idade menor conhece a música de Belchior. Por sorte, eu tive grande influência da música brasileira por intermédio de grandes pessoas que conheci na vida. Tive contato com suas músicas após minha adolescência e sempre compreendi o sentimentalismo existente nelas. Esses dias, ouvindo antigos discos, ouvi um exemplar de Alucinação, que é um de seus melhores discos, quase uma compilação de suas melhores músicas. Escutei, como sempre, sem pretensões e me surpreendi com a profundidade das mesmas músicas que eu escutava adolescente. À palo Seco, Paralelas, Como Nossos Pais e Galos, Noites e Quintais,Velha roupa colorida e Comentários a respeito de John são minhas preferidas. Não é difícil identificar nelas o sofrimento de alguém que cansou de compreender o mundo a sua volta e não ser compreendido por ele.
Suas músicas quase sempre retratam medo, tristeza e insatisfação. Foi crítico ferrenho da ditadura, era amante incondicional do Brasil e da América do Sul, o que o torna símbolo de universitários que ainda procuram revoluções nos dias de hoje. Produziu um som de vanguarda e tornou-se o primeiro grande cantor nordestino da MPB. Foi referência pra inúmeros cantores e bandas que mudaram o curso da música no Brasil.
No entanto, Belchior teve um sucesso razoável e nunca foi valorizado como realmente deveria ter sido. Percebeu isso com o mesmo olhar do menino que cantava na feira de Sobral, sofreu grandes depressões por isso. Vagou sem rumo jogando fora poesias em pequenos bares do interior de São Paulo, onde viveu muito tempo.
Até que um dia, se deu conta de que o Brasil não é mais o mesmo. Até tentou se mudar pra um vilarejo no interior do Uruguai, mas não conseguiu ficar lá por muito tempo. Às vezes diz sentir aflição ao ver os jovens brasileiros cultuando tanta porcaria que é produzida e que eles chamam de música. Tudo isso são realmente sérios motivos para não ser feliz. Mesmo assim, Belchior ainda canta muito mais, porque não é mudo. Porque não se esqueceu do menino e seu violão metalizado, que, na feira de Sobral, não se importava mais se não era ouvido.
O que eu desejo aprofundar depois desta introdução é o porquê deste esquecimento de um dos maiores de nossa música. Aprendi com o grande Descartes que, antes de tudo, é preciso método. Por isso, desde muito cedo guio-me pelo seguinte, inquebrantável e repetido hábito total pensamento e reflexão dos grandes debates que inquietam a nação.
Em nome da preservação do meu resto de sanidade, sempre vou ao embate às importantes discussões no início de semana – especialmente quando estou na fila do banco, desesperado, procurando uma fórmula para amenizar as dores de minha maltratada conta bancária., tal como o tal rapaz latinoamericano que nem dinheiro no banco tinha.
Por que eu falo disso agora? Porque muita gente só se deu conta do grande Belchior depois que o fantástico dois anos atrás levou ao ar a historia do seu desaparecimento.
Amigos pensem bem e vamos valorizar um dos maiores poetas de nossa música. Suas canções, bem maior de um compositor, estão vivas e presentes na memória dos brasileiros que o ouviram cantar, e viam aquele hippie de vasto bigode, lirismo triste e combativo, e versos incomuns. Se alguém, de repente, começa a cantarolar “não quero lhe falar, meu grande amor/ das coisas que aprendi nos discos/ quero lhe contar como vivi/ e o que aconteceu comigo...”, é impossível não se lembrar da interpretação de Elis Regina, e de como aquela gravação se tornou um standard da música brasileira. As cantoras que vieram bem depois de Elis, como Daniela Mercury, gostam de cantá-la pra chegar perto do modelo de cantora que é Elis.
Ou uma canção tal como “Nunca mais meu pai falou, she’s leaving home, e meteu o pé na estrada, like a rolling stone” nos faz pensar em muito da contracultura que tropicalismos a parte, Belchior sempre rejeitou e que hoje são vedetes em vestibulares em detrimento de poesia boa do século XIX. A música de Belchior é a notícia mesmo de que o sonho havia acabado, contrapondo-se inteligentemente à alegria tropicalista: “nada é divino, nada é maravilhoso/ ao vivo é muito pior“. Há uma urgência em seus versos, e na sua interpretação angustiada, sanguínea, sensual, quase falada: “quando eu cantar/ quero ficar molhado de suor/ e, por favor, não vá pensar que é só a luz do refletor“.
E há – por que não? – uma nostalgia como no subtítulo de Mucuripe, “jovem também sente saudade”. A sessão de cinema das cinco, a camisa toda suja de batom. E uma canção alegre, Medo de avião, releitura de I wanna hold your hand, dos Beatles, e que ganhou uma outra melodia de Gilberto Gil, também bonita.
Estou lembrando dos versos e ouvindo as canções aqui na minha rádio-cabeça, aos pedaços, e tendo bem presente os instantes em que, mais jovem,ficava fascinado por um verso que dizia “eu quero é que este canto torto feito faca corte a carne de vocês“. Há uns cinco anos, vi Belchior cantando essa música no programa Altas horas, junto com o Los Hermanos. Esta no youtube pra quem quiser ver.
Das canções cujas letras ganham versões maliciosas e populares tem aquela que diz “aí um analista me comeu”, em vez de “aí um analista amigo meu”, que é a letra original. É engraçado, e não é pouco. Caymmi uma vez disse que seu sonho era ser um autor de algo que se perdesse no meio do povo. Aconteceu com ele, e, de certa maneira, com Belchior.
Esse texto não é e nem pretende ser um necrológio, pois Belchior, graças a Deus, ainda não morreu. Ele só sumiu, ou sumiu só. Mas eu sei onde ele anda: em suas canções imorredouras, vivas, presentes e, ainda e sempre, urgentes. Além, no Corcovado, quem abre os braços, é Belchior. Copacabana, o mar, as borboletas pousando entre as flores do asfalto, são Belchior, talvez cansado de nós, repousado de nós, infinito de nós.
Abraços e Outras quimeras …
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