Vocês, artistas, que fazem teatro em grandes casas, sob a luz de sóis postiços, ante a platéia em silêncio, observem de vez em quando esse teatro que tem na rua o seu palco: cotidiano, multifacetário, inglório, mas tão vivido e terrestre, feito da vida em comum dos homens – esse teatro que tem na rua o seu palco. (...) Oxalá possam vocês, artistas maiores, imitadores exímios, não ficar nisso abaixo deles! Não se afastarem, por mais que se aperfeiçoem na arte, desse teatro que tem na rua o seu palco! (Brecht, 2000, p.235)
Estaria Brecht em sua colocação nos incitando a exercitarmos nosso olhar para o cotidiano imprimindo neste uma certa teatralidade?
Num primeiro momento cabe ressaltar que esta definição se faz cada vez mais importante nos dias atuais, pois trata de delimitar o que diferencia o teatro do cotidiano, dos outros gêneros e artes, e as distinções formais entre as práticas (apesar dessas especificidades não ocuparem fronteiras tão desenhadas que sejam definidas com facilidade). Porém, as indagações e desdobramentos sobre este conceito, nos levam sem dúvida a repensarmos e redefinirmos nossa prática e nosso olhar sobre o fazer teatral.
Entendendo o teatro como artefato de representação ou interpretação de si mesmo, uma de nossas jovens entrevistadas, distingui teatro da vida, mas consegue percebê-lo em seu cotidiano, dizendo que: “Qualquer representação é teatro. Se tu chegar e estiver representando alguma coisa que não é bem você, é teatro, até no dia-a-dia” (Natália)
Frente a estes cruzamentos, podemos então nos remeter a origem grega da palavra teatro, o theatron, que segundo Pavis (1999, p. 372) revela uma propriedade esquecida, porém fundamental, desta arte: é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar. Por sua vez o teatro possibilita um ponto de vista sobre um acontecimento, um olhar, um ângulo de visão. Este deslocamento provoca uma fricção da relação entre olhar e objeto olhado, que fissura aquilo que denominamos de real, abrindo a entrada para possibilidades de outros reconhecimentos deste mesmo real, através da construção de um novo olhar que estabelece: a teatralidade.
Já na fala de um dos nossos entrevistados a questão do ponto de vista fica bastante claro: “Acho que teatro não tem idade. Porque a maior parte do teatro é de acordo com o ponto de vista. Jovem não tem idade, mas acho que também não tem idade pro teatro, qualquer idade pode ver. (...) Tem várias formas de tu interpreta uma peça. Isso vai da cabeça de cada um, então de acordo com a idade, com a maturidade, com as características das pessoas pode ser interpretado de um jeito ou de outro. Acho que teatro não tem idade, porque dependendo do ponto de vista do espectador a peça muda”. (Augusto)
Sendo assim, a teatralidade residia no nosso olhar e faria parte do exercício da imaginação, onde nos permitimos ser os outros, perceber o mundo a partir dos outros e vislumbrar mudanças possíveis. Seria um ato consciente, que faz emergir tanto do dia-a-dia como da ficção, um espaço imaginário que compreende sem distinção comportamentos, acontecimentos, corpos e objetos.
Definimos que “a condição da teatralidade seria, pois, a identificação (quando ela foi querida pelo outro) ou a criação (quando o sujeito a projeta sobre as coisas) de um espaço outro que o do cotidiano, um espaço que cria o olhar do espectador.”( Feral, 1988, p.6)
A teatralidade surge na modificação das relações entre os sujeitos, o outro se torna ator (pois manifesta-se como tal), ou porque o olhar do espectador assim o define. Ela permite ao sujeito que faz, como aquele que olha, a passagem do aqui a outro lugar.
Para nosso jovem Augusto teatro “é tu mesmo extravasar, mudar tuas emoções para melhor. Teatro é saber passar essas emoções para as outras pessoas que estão assistindo”.
Dentro desta idéia, a teatralidade é, antes, o resultado de uma dinâmica perceptiva, a do olhar que liga um olhado (sujeito ou objeto) e um olhante (também criador).
Como nos conta a jovem Natália “fazer teatro a gente sempre faz. Qualquer coisinha, né?! A gente entra no quarto, já faz aquele teatro: - Ai, mãe não sei o que... começa a chorar porque quer alguma coisa. Isso pra mim é teatro. Quando eu vou no super e a mãe não quer me dar alguma coisa a gente sempre faz aquele teatro. Várias vezes eu já chorei para conseguir alguma coisa, pra me fazer de coitadinha e coisa assim.”
Então, a teatralidade, estaria ENTRE a presença de um ser humano frente a outro da mesma espécie?
Porém, no caso, um deles (o ator) deveria estar permanentemente em contato com a totalidade do seu corpo, sendo mais “sensível”, reconhecendo que é fundamental estar “presente”, mesmo sem “fazer” nada?
Ou deveria o outro transformar o que vê, possibilitando neste encontro uma modificação do olhar, reconhecendo ali a teatralidade?
Ou por sua vez o que importaria é a verdade do momento presente? Seria a teatralidade uma convicção absoluta que só pode emergir se ator e público entram em conexão?
Novamente nos deparamos com o olhar, atribuímos a teatralidade ao olhar, a algo impalpável, mas que nos projeta no mundo sensível, provocando estados, ativando imagens, manifestando algo oculto e misterioso.
Este olhar nos permitiria recriar, voar através da realidade imaginária, transpondo limites físicos e psíquicos, explorando e avançando para além das convenções de espaço e tempo. Essa exigência é necessária para todas as artes, afinal, elas pedem um desprendimento, uma generosidade para percebê-las e senti-las de fato. Elas aguçam nossos sentidos e provocam sensações diversas somente se nós a permitirmos.
Por fim, aguçar este olhar seria despertar algo que já reside no indivíduo: a teatralidade. Revelando-a como uma colaboração do sujeito em relação ao mundo e ao imaginário.
Mas, afinal, o que é teatralidade?
BIBLIOGRAFIA:
BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Trad. Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
FÉRAL, Josette. A teatralidade. Trad. Francine Roche. In: Poétique, Revue de Théorie et dánalyse littéraires. Ed. Seuil, número 75, setembro, 1988.
[1] Entrevistas realizadas em dezembro de 2007 com LUANA, 19 anos, estuda Hotelaria-ênfase em Turismo no SENAC; NATÁLIA, 16 anos, estuda no Segundo Ano do Ensino Médio do Colégio Aplicação da UFRGS e AUGUSTO, 16 anos, estuda no Segundo Ano do Ensino Médio do Colégio Aplicação da UFRGS. Todos têm contato com o teatro como espectadores e como alunos, atores através da Escola ou de Cursos de Formação. Os nomes utilizados são fictícios.
Disponivel em
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