O totem do teatro de vanguarda brasileiro, Zé Celso Martinez Correa, era a atração principal de uma festa em comemoração aos 108 anos do Teatro Alberto Maranhão. Quando desceu de seu táxi, Zé Celso sequer notou o homem-elefante performado pelo artista Enio Cavalcanti. O performer, vestido com uma bandeira do Rio Grande do Norte e uma cabeça de elefante feita de papelão, depois de 24 horas sem comer, prostrou-se em frente ao TAM, entregando um conto-manifesto escrito por ele mesmo em crítica à situação da vida cultural da cidade. Não obstante a força de sua presença, permaneceu meio anônimo por toda a noite. Já dentro do teatro, os sorrisos bêbados da pulsação orgiástica emanada do corpo do renomado filho de Baco e a devoção estampada na face do público.
Zé Celso é conhecido por seu trabalho no Teatro Oficina, iniciado nos anos 60; por sua apropriação das idéias antropofágicas lançadas por Oswald de Andrade; e pelo caráter carnavalizado de seu trabalho. Em sua “palestra”, no TAM, falou sobre tudo isso e mais. O teatrólogo aproveitou seu espaço para fazer críticas à Presidenta Dilma Roussef, acusando-a de reduzir a multiplicidade brasileira a um regime tecnocrático de saber. Para ele, a cultura deve ser a preocupação central de um presidente, porque é nesse nível em que a sociedade tende a movimentar-se. Mas não se trata de compreender a noção de “cultura” somente como um regime de produção e difusão artística, mas em sentido amplo: cultura como aquilo que comemos, sentimos, da forma como vemos o mundo e agimos nele.
É próprio da comunicação de Zé Celso sair dos moldes da palestra, constituir em tom de bate-papo uma zona de intimidade, altamente contaminada pela energia que seu corpo dissemina. O artista, a fim de remexer na passividade da platéia, produziu um cortejo de alegria carnavalesca que nos tirou praticamente a todos de nossas poltronas, lançando-nos à ação festiva num espaço desprendido de suas amarras. Pode-se dizer, no limite, que o que o papa do Teatro Oficina cria é um ambiente livre, onde os fluxos de energia podem correr corpo a corpo. No entanto, paradoxalmente, como um maestro a orquestrar as posturas de sua platéia, por vezes, ele atira: “Você, descruze os braços para não interditar o trânsito de energia!” Ora, parece-me que essa orquestração vai à contramão daquilo que ele propõe – um teatro onde a energia corra de maneira horizontal. Não será esse dedo-diretor de Zé Celso uma forma verticalizada de gerir a energia? Será que, nesse rompimento com a fluidez do ambiente, ele não limita, justamente quando propõe o além-limite?
Para além disso, Zé Celso é um panfletário do fim da Idade Mídia – esse período de controle sutil, apropriação biopolítica dos corpos e valoração hipócrita da vida. Num chamamento profano do pós-mundo, Zé Celso bebe vinho, suscita um teatro pós-disciplinar (ele chega a comparar o palco italiano ao altar de um padre) e nos convida a um retorno abissal ao rito de origem do teatro. Nesse ponto, devo falar sobre essa idéia de origem de modo a pensá-la de forma um pouco distinta da que estamos acostumados. A origem das coisas é, antes, um estado de indeterminação, uma prenhês permanente, em que nada ainda é e o que há é uma multiplicidade de possíveis. É nesse estado em que Zé Celso – o antropófago (aquele que tem fome de tudo o que não é) – nos deixa, nesse lugar em que tabu e totem indefinem suas bordas, onde não há mundo, há mundos.
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